quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Django Livre - Oscar 2013

★★★★★
Excelente


"Django Livre" é o filme mais difícil que Quentin Tarantino já fez. O filme já estreou sob fortes polêmicas por mostrar de forma tão crua e realista a escravidão, uma ferida que até hoje não cicatrizou perfeitamente na população americana. Em sua obra anterior, "Bastardos Inglórios", ele já tinha mexido num tema sensível como a II Guerra Mundial, porém com um olhar bem mais cômico do que é usado em "Django". Em "Bastardos" há poucas cenas dramáticas. Tudo ali é criado para exorcizar todos os sentimentos que temos em relação ao Nazismo e os atos praticados pelo movimento.
Na figura de Shosanna ou de Aldo Raine e seus subordinados nos sentimos justificados, mesmo que nosso senso de justiça condene a violência que Tarantino tanto exalta. Mas a arte tem esse efeito. Ela é capaz de subverter o nosso super ego por alguns instantes e nos fazer apreciar algo que não faríamos na vida real.

Já em "Django", antes desse "exorcismo" (iconizado na vingança do escravo liberto), somos obrigados a testemunhar uma grande dose da face mais selvagem desse período tão obscuro da história.
Durante as cenas dramáticas, Tarantino fez questão de não esconder nada. Com ações, palavras ou gestos, nós somos testemunhas dos maus tratos sofridos por pessoas que eram consideradas menores apenas por causa da cor da pele. Algumas cenas com os escravos chegam a ser incômodas de tão "cruas". Sabiamente, o diretor e roteirista trata o tema com seriedade, e guarda os seus já famosos exageros para as sequências de ação que, aí sim, são divertidas e surreais, com bastante sangue jorrando pela tela, tiros certeiros, etc.

Na trama, o escravo Django (Jamie Foxx) é liberto por King Schultz (Christoph Waltz), um caçador de recompensa que precisa dele para reconhecer suas próximas vítimas, três irmãos a quem Django servia. Terminado o serviço, Django decide ficar mais um tempo com Schultz, que o treina e os dois viram sócios no "negócio". Juntos ele bolam um plano para resgatar a esposa de Django, Broomhilda (Kerry Washington), que foi vendida ao cruél Calvin Candie (Leonardo DiCaprio).


Muita gente tem criticado o filme por supostamente "exaltar" a escravidão. Essas pessoas não vêem que é exatamente o contrário. O filme conta uma incrível história de ascensão de um escravo liberto. As cenas fortes estão ali para criar um sentimento de revolta no espectador, para que a vingança de Django seja mais "justificável", para que o público se sinta vingado. E Tarantino faz isso com muita competência — assim como no já citado "Bastardos Inglórios".
Inclusive, é interessante notar a inversão de papéis nesses dois filmes. Se em "Bastardos", o vilão (Landa) era o alemão caçador de judeus, e o americano sulista (Aldo) era o herói, em "Django" o alemão (Schultz) contra a escravidão passa a ser o herói e o americano sulista (Candie, principalmente), o vilão.
Sem dúvida algo feito propositadamente, já que o diretor já disse que os dois fazem parte de uma trilogia (ainda inacabada) de filmes históricos.

A já famosa linguagem visual de Tarantino está presente no filme, como não poderia deixar de ser. O zoom in rápido que foca na face do personagem, conhecido como Shaw Brothers's Zoom ou Eye Popping Quick Zoom (quando o personagem de DiCaprio é apresentado, por exemplo), assim como seus closes em detalhes de uma ação comum, como encher um copo com cerveja, são utilizados mais de uma vez. Os longos planos, tais como sua forma não linear de contar histórias, com vários flashbacks, também.
A trilha sonora é bem eclética. Vai desde o famoso compositor de trilhas westerns Ennio Morricone até o hip hop de Rick Ross. A mesclagem de músicas antigas com novas deu bastante certo, e todas elas muito bem escolhidas, funcionando como uma extensão direta do que é narrado.


Outra marca presente do diretor é fazer da violência uma coisa divertida e até bonita em alguns casos (como o sangue espirrando numa plantação de algodão) e sempre criar vilões carismáticos. E Leonardo DiCaprio, que interpreta um vilão pela primeira vez, está espetacular na pele de Calvin Candie. O personagem é capaz tanto de ser cativante, educado e bom anfitrião, como de ser extremamente violento e brutal. DiCaprio levou tão a sério o papel que durante a cena do jantar com Django e Schultz, ele realmente machucou a mão e, mesmo sangrando, continuou atuando. É uma pena que, de prêmios com grande reconhecimento, ele só tenha sido lembrado no Globo de Ouro.

Além de Calvin Candie, temos um outro personagem igualmente carismático e mau, interpretado perfeitamente por Samuel L. Jackson, um dos atores preferidos de Tarantino. Ele faz com perfeição o negro racista Stephen (braço direito de Candie), talvez um dos melhores personagens já criados pelo diretor.


Mas não só de bons vilões um filme vive. Tarantino também costuma criar (anti) heróis icônicos. E Jamie Foxx faz um bom trabalho como o escravo liberto, nos mostrando um Django violento, porém de certa forma inocente. Em alguns momentos, mesmo sem falar, ele consegue passar o que o personagem sente apenas com o olhar ou linguagem corporal. O modo, por exemplo, como ele se comporta e fala quando ouve a lenda alemã de Broomhilda contada por Schultz, remete ao de uma criança curiosa. Só que essa ingenuidade vai se perdendo no decorrer do filme, quando os acontecimentos da trama vão moldando sua personalidade, o tornando mais violento e sedento por vingança.

Já Christopher Waltz parece repetir o seu "Hans Landa" de Bastardos Inglórios, só que agora numa versão "boazinha", ou quase isso — quem mata um pai na frente de seu filho não é tão bom assim. A atuação é muito parecida, com os mesmos trejeitos, entonação de voz e até o jeito de falar, sempre muito cordial e eloquente. Não achei justo ele receber tantas indicações (inclusive para o Globo de Ouro, que ganhou, e Oscar) enquanto DiCaprio, que faz um personagem bem mais difícil e complexo foi esquecido. Porém, mesmo assim, é impossível não gostar de ver Waltz atuando. É um dos melhores personagens do filme.


Percebe-se que ao longo dos anos Tarantino evoluiu a sua forma de contar histórias. Em "Django Livre" isso se confirma. Ainda que em algum momentos a narrativa pareça ficar um pouco arrastada (algo normal num filme de quase três horas), ele consegue trazer o espectador para dentro do filme e fazê-lo ficar interessado durante o tempo todo. Não há nenhuma cena que eu lembre que não faça sentido, ou que pareça ser encheção de linguiçaa única, talvez, seja a do grupo que ataca Schultz e Django, mas serve como escape cômico. E ele ainda cortou mais de 30 minutos de cenas que adicionariam mais à trama. Com tanto material filmado e editado, fica a pergunta se teremos uma versão do diretor lançada para o mercado de Home Video.

Com o seu famoso timing perfeito, Quentin Tarantino mais uma vez tem sucesso em equilibrar bem drama, comédia e suspense. Em nenhuma cena uma piada corta um clima mais denso dramaticamente, parecendo forçado. Os risos fluem naturalmente, e muitas vezes causados por situações constrangedoras, recursos visuais, ações inesperadas, etc, sem necessidade de punchlines. Com todos os seus recursos narrativos e visuais, não é a toa que ele é um dos diretores mais aclamados da atualidade.

"Django Livre" realmente é um filme longo, mas vale cada minuto. E, no final das contas, mesmo tendo que aguentar muitas cenas pesadas e revoltantes, a sensação que fica é de satisfação. Sentimos que tudo que testemunhamos o personagem passar foi recompensado — e com uma boa dose de balas e muitos litros de sangue. Por mais absurdo que seja, nos sentimos bem com isso. E essa é a especialidade desse grande artista que é Quentin Tarantino.

Django Unchained
EUA, 2012 - 165 min.
Western/Aventura
Direção: Quentin Tarantino

Roteiro: Quentin Tarantino
Elenco: Jamie Foxx, Christoph Waltz, Leonardo DiCaprio, Kerry Washington, Samuel L. Jackson
Indicações ao Oscar: Melhor filme, Melhor ator coadjuvante, Melhor roteiro original, Melhor edição de som

*Em negrito os prêmios ganhos

4 comentários:

  1. Simplesmente EXCELENTE!!!! Disse tudo que eu queria dizer de maneira inteligente ^^

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  2. Bela crítica, o filme é realmente excelente.

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  3. Quando revi Django Livre gostei mais ainda. O bom nessas revisões é que vc vai percebendo detalhes que passaram na primeira vez, ainda mais quando vc vê no cinema e pega carona na animação da galera.

    Uma cena que não percebi a importância foi o do Django tirando a sela e os antolhos do cavalo, que nessa hora representa os escravos. Esse é o momento em que os escravos olham Django com admiração. Uma revolução pode ter começado naquele momento. A sela significa o fardo que eles não têm mais que carregar, e os antolhos a visão limitada que eles têm da vida e do seu lugar no mundo. Da primeira vez que vi, confesso que fiquei um pouco decepcionado por ter esperado um final com o Django tipo liderando uma revolução. Mas agora percebo que essa cena representava exatamente isso.

    Por esses pequenos detalhes que eu amo o cinema.

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