segunda-feira, 24 de junho de 2013

Segredos de Sangue

★★★★☆
Ótimo


Texto com pequenos spoilers sobre a trama do filme.

O cinema coreano tem crescido muito nos últimos anos, inclusive exportando seus diretores para Hollywood. Curiosamente, três deles tiveram filmes programados para 2013. O primeiro da leva foi Kim Ji-woon (conhecido pelo excelente "Eu Vi O Diabo" e pelo terror "Medo") que dirigiu o novo filme de Arnold Schwarzenegger, "O Último Desafio". Bong Joon-ho ("Memórias de Um Assassino" e "O Hospedeiro") roteiriza e dirige "Snowpiecer", uma ficção científica com um elenco estelar, com direito ao Vingador Chris Evans e as ganhadoras do Oscar Tilda Swinton e Octavia Spencer, mas ainda sem data para estrear. E dia 14 chegou aos cinemas brasileiros o suspense "Segredos de Sangue", 10º longa do elogiado diretor Park Chan-Wook, mais conhecido pela Trilogia da Vingança (que tem em "Oldboy" seu ápice), e por seu último filme, o vampiresco "Sede de Sangue".

"Segredos de Sangue" conta a história da família Stoker (nome original do filme). Depois que o pai da introvertida India (Mia Wasikowska) morre, o seu tio Charles (Matthew Goode), que ela nunca soube que existia, vai morar com ela e sua mãe, Evelyn (Nicole Kidman). Charmoso e simpático, ele logo ganha a confiança de sua mãe, mas India começa a suspeitar que ele não é tão perfeito assim. A presença de Charlie irá fazer com que India descubra detalhes sobre o passado sombrio da família Stoker e sobre ela mesma.

Diretor que costuma realizar filmes com personagens excêntricos e bem desenvolvidos, Park Chan-Wook dessa vez aposta em tipos mais normais, ao menos à primeira vista, e concentra seu apreço pelo diferente no visual do filme, que é o que realmente chama a atenção. São planos imprevisíveis, com enquadramentos curiosos que valorizam o filme e ajudam a contar a história, já que a narrativa, dessa vez não é de tão alto nível.


A princípio remetendo ao Hitchcockiano "A Sombra de Uma Dúvida" (até no nome do tio), "Segredos de Sangue" se revela o oposto, já que, ao contrário do suspense de 1943, a sobrinha e o tio acabam tendo algo em comum. Pistas de que há algo de diferente em India vão sendo dadas desde o início do filme, mas só descobrimos (junto com ela) com o desenvolvimento de sua relação com Charles. E o auto conhecimento é tema forte no filme. India está em transição da adolescência para a fase adulta — o longa começa no dia de seu 18º aniversário. Ela sente emoções, ímpetos, que não sabe explicar. Seu tio acaba funcionando como um guia.
Em determinado momento, vemos que o falecido pai de India sabia muito bem o seu "segredo", porém conseguia administrá-lo, funcionando até como um tipo de super ego. O tio Charles tem o objetivo de liberar os impulsos da jovem, se transformando no Id. O resultado desde embate será muito interessante, ainda que não chegue ao nível dos clímax de outros filmes do diretor.

Porém, mesmo que o desenvolvimento da história esteja um pouco abaixo do padrão Park Chan-Wook, o diretor mostra uma exímia sensibilidade na hora de filmar e decupar o filme. Além dos já citados planos originais, ele utiliza, por exemplo, vários belos raccords* tanto para dar noção de elipses (a imagem de India caminhando no caminho que leva a sua casa sobrepõe a dela caminhando sozinha na estrada), quanto de flashbacks (funde os cabelos de Nicole Kidman sendo penteados a um campo onde India e seu pai caçavam).

*Raccord: ligação entre duas cenas por efeito visual ou sonoro, para reforçar ideia de continuidade.


A direção de arte acerta em cheio no clima do filme, utilizando cores sempre harmoniosas, como lilás, azul e laranja, mas sempre com atenção especial no verde e no vermelho em cenas chave. A iluminação e os filtros da fotografia de Chung-hoon Chung ajudam na padronização das cores do filme, como na sequência externa em que India tem um encontro com Whip. Não bastasse o ambiente com muita grama e árvores, percebe-se um cuidado especial no filtro utilizado nas câmeras, inteligentemente dando um tom ainda mais esverdeado à cena, já que é quando a natureza de India é revelada (ou pelo menos aparece mais). Se o verde representa a natureza (bastante explorada no filme), o vermelho forte, quase vinho, o sangue — no sentido de família e da violência que existe dentro da personagem principal.

Na mesma sequência citada de India com Whip no parque, vale citar o belo efeito que a câmera de Chung cria ao filmar India num plano médio girando no roda roda, dando inclusive um certo ar sobrenatural à jovem, que parece estar flutuando. Toda a sequência foi muito bem dirigida e nos dá a noção de uma predadora seduzindo sua vítima. Trabalho notável de Mia Wasikowska.
O diferencial de India é muito bem explorado especialmente em duas outros momentos também. Na sequência dela na mesa da cozinha, escutando o barulho da casca do ovo se quebrando, e a da aula de pintura, em que, enquanto todos pintam o vaso usado como modelo, ela pinta o padrão do lado de dentro do vaso ("Meus ouvidos ouvem o que outros não podem ouvir. Coisas pequenas e longes que pessoas não podem ver normalmente são visíveis para mim.")


Por tudo isso, "Segredos de Sangue" vale mais como um exercício visual do que como narrativo, já que peca um pouco no desenvolvimento da trama, e fica a impressão de que o roteiro de Wentworth Miller (ele mesmo, o Michael Scofield de "Prison Break") não teve o seu potencial máximo aproveitado. Mesmo assim Park Chan-Wook não decepciona em sua primeira empreitada no cinema americano, compensando a fragilidade da narrativa na forma como ele utiliza recursos visuais e metafóricos para enriquecer o estudo de seu personagem principal, India — a aranha, mais um exemplo, simbolizando o despertar de sua sexualidade.

Pelos muitos simbolismos (muitos nem citados nessa crítica), é um filme que vale ser visto mais de uma vez, pois certos detalhes só serão captados e completamente compreendidos depois de uma revisita ao filme.

6 comentários:

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    1. Muito obrigado! Eu sempre tento fazer com que a leitura dos textos valham a pena.

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  2. Você foi longe nessa crítica: montagem, figurino, direção de arte etc. Há, inclusive, análise psicanalítica do filme!
    Bom texto. Parabéns.

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    1. Obrigado, cara! Apesar de não ter adorado o filme, ele é muito inteligente esteticamente. Gostei muito disso.

      Saudade sua!

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  3. Gostaria de saber qual a parte do filme mostra que o pai sabe do "segredo" de India.

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  4. Acho que devido ao fato do pai levá-la para caçar mesmo não gostando dessa atividade. Isto sugere que ele percebeu na filha os sinais de psicopatia e tentou fazer com que ela sublimasse a pulsão via caça, uma forma de dar vazão ao seu desejo de matar.

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